O processo das formigas

Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO

A história do Direito Penal revela fatos que, hoje, parecem pura imaginação. Até a Idade média, há casos de julgamento e execução de animais porque “culpados” de infrações penais.

O Dictionnaire de la Penalité, de Saint-Edme, informa que, na França, em 1313, um touro brabo soltou-se e chifrou um homem, que não sobreviveu aos ferimentos.

Carlos, conde de Valois, em cujas terras se dera o fato, ordenou a prisão do touro e mandou submete-lo a processo. Apurada a veracidade da ocorrência, condenaram o animal a ser enforcado. A execução verificou-se nas forcas patibulares de Moizy – le Temple, “local do delito”.
Bartolomeu Chassanée e Gaspard Bailly celebrizaram-se pelas defesas que, na qualidade de advogados de seres irracionais, produziram em processos criminais na França, no limiar da Idade Moderna.

O primeiro apresentou engenhosa argüição em favor das ratazanas que abundavam na diocese de Autun, entre 1522 e 1530, e devastavam as plantações, causando uma conjuntura de carestia. O grande advogado justificou a contumácia das acusadas, alegando irregularidade da citação, que havia sido incompleta pelo que se impunha a repetição do ato, com amplitude, porquanto as ratazanas residiam em vários sítios. E assim se fez. Como era natural, os animais não acudiram à segunda citação.

Então, Chassanée teve uma “Saída” para a nova dificuldade que se lhe deparava com a revelia de seus “constituintes”. Invocou a ocorrência de força maior, impeditiva do comparecimento dos ratos. Além de faltar pontes nas estradas de acesso à sede da diocese, não ofereciam vias seguras de trânsito, infestadas que eram de gatos. A habilidade da defesa foi plena de êxito: os ratos foram absolvidos.

Na cidade de São Luís, ocorreu ação judicial movida contra animais no inicio do século XVIII. O padre Manuel Bernardes, na Nova Floresta (Livraria Lelo, 1949, vol I, págs. 326 e seguintes) noticia “extraordinária pleito” que ocorreu entre os religiosos menores da Província da Piedade do Maranhão e as formigas daquele terreno.

Foi o caso (conforme narrou um sacerdote da mesma religião e província) das formigas que minaram a despensa dos frades, afastando a terra debaixo dos fundamentos, que ameaçava a própria ruína. Furtaram a farinha de pau, que ali estava guardada para o abasto da comunidade. A fim de colocar um basta na subtração, as formigas foram colocadas perante o Tribunal da Divina Providência. Designados procuradores; o prelado seria o juiz que, em nome da Suprema Equidade, ouvisse o processado e determinasse a presente causa. Houve libelo. Seguido de contestação; do contexto, extrai-se este trecho: “as formigas, recebido o beneficio da vida por seu criador, tinham direito natural a conservá-la por aqueles meios que o mesmo Senhor lhes ensinara. Pelo juiz, vistos os autos, foi dada a sentença e pondo-se com ânimo sincero na equidade que lhe pareceu mais racionável, deu sentença que os frades fossem obrigados a sinalar dentro de sua cerca sítio competente para vivendas das formigas, e que elas, sob pena de excomunhão, mudassem logo de habitação, visto que ambas as partes podiam ficar acomodadas sem mútuo prejuízo. Outro religioso, por mandado do juiz, em nome do Criador, fez a leitura da decisão, nas bocas dos formigueiros.”

Os autos do processo encontram-se no arquivo do convento; faltam as primeiras páginas. A parte conservada começa com a autuação de embargos de contraditas com que as mesmas rés, por seu curador ad litem, vieram contra as testemunhas que haviam jurado por parte dos reverendos autores. Tem a data de 17 de janeiro de 1713. Por despacho de 24 de janeiro, o juiz, que era o reverendo padre vigário-geral, o licenciado João Teixeira de Morais, desprezou os embargos. Depôs, como testemunha, o capitão Urbano Rodrigues, de idade que disse ser de 94 anos. Consta, ademais, a seguinte certidão: “Eu, escrivão do eclesiástico, abaixo assinado, em cumprimento do despacho acima, fui ao convento de Santo Antônio dos Capuchos, sendo lá na sua cerca citei as formigas em sua própria pessoa, por todo o conteúdo na petição e despacho acima, lendo-lhes tudo de verbo ada verbum, havendo-lhes nesta forma a citação por feita, em fé do que passei a presente em São Luís, 19 de Junho de 1714 – Joseph Gunstardo de Beckmannz”. Segue-se o termo de juramento aos Santos Evangelhos deferido a um novo curador “ad hoc” dado às rés, e o termo de vista aos autores em 20 de junho. E aqui parou o processo sem mais ter andamento até hoje.

O fato esta narrado por Antenor Bogea, in Estudos de Direito e Processo Penal em Homenagem a Nelson Hungria, “Do concurso de Agentes na Suposta Criminalidade Animal”, Forense, Rio, 1962, págs. 428-454.
Reproduzi trechos, utilizando as palavras. Pretendi ficar preso ao texto, lido há muitos anos. Comentei-o com o autor várias vezes e sugeri ao Senador José Sarney promover a publicação dos autos do processo. Peça de significada expressão. É o Brasil na história das idéias penais.
Agora, não poderia mais consultar o amigo e ilustre professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade do Maranhão. Faleceu Antenor Bogea. Estudioso, possuía invejável biblioteca jurídica. O diretor da Faculdade. Advogado, por vários mandatos, presidente da OAB/MA. Companheiro de jornadas de Direito Penal. Deputado Federal. Membro da Academia de Letras do Maranhão. Deixa entretanto, as Gerações que influenciou e os excelentes escritos. Só nos cabe repetir : o homem fica em suas obras! Até a morte é relativa!

LUIZ VICENTE CERNICCHIARO é Ministro do Superior Tribunal de Justiça e Professor Titular da Universidade de Brasília.