O fato de o servidor público ter acumulado a função de sacerdote da Igreja Católica impede, por si só, o reconhecimento de união estável para efeitos previdenciários. Afinal, ele só se manteve padre porque cumpriu com o dever do celibato, como exige o Direito Canônico.
Com isso, a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve sentença que negou o reconhecimento de união estável, em ação interposta por uma mulher que queria receber a pensão por morte de servidor-padre.
No caso, a mulher pediu o reconhecimento de união estável com o servidor aposentado do estado do Rio Grande do Sul e que era, ao mesmo tempo, padre na Paróquia Imaculada Conceição, na cidade de Cruz Alta. O objetivo era conseguir o beneficio de pensão por morte do servidor junto ao Instituto de Previdência do Estado (Ipergs).
Em primeira instância, a juíza que proferiu a sentença indeferiu o pedido sob o argumento de que a relação, que durou cerca de 40 anos, fora apenas de ‘‘cuidados mútuos’’, já que não envolvia relação sexual.
O relator, desembargador Newton Medeiros Fabrício, se alinhando ao parecer do Ministério Público, disse que, se o padre tivesse a intenção de constituir união estável com a autora, a comunidade avisaria os seus superiores hierárquicos — que o expulsariam da Igreja.
Por outro lado, lembrou que o artigo 1.521 do Código Civil — que lista os impedimentos ao casamento e, por extensão, à união estável — não traz nada sobre o fato do cônjuge/companheiro ser padre. ‘‘E, de fato, escapou esta circunstância ao legislador, tendo em vista a improbabilidade de se constituir legitimamente união estável nestes termos, mas também pelo fato de que a Constituição Federal prevê a separação entre a Igreja e o Estado (artigo 19) e, ainda, observa o direito à liberdade religiosa’’, discorre o parecer.
Para o MP, como vivemos num estado laico, o Estado brasileiro reconhece que o ordenamento jurídico da Igreja Católica se constitui numa legítima ordem jurídica paralela, que deve ser respeitada.
‘‘Saliente-se, ainda, que o máximo que a autora poderia sustentar é ter constituído concubinato com o de cujus [o padre-servidor]; ou seja, relacionamento não eventual constituído com pessoa impedida de se casar. O que, evidentemente, não traz nenhum direito à autora’’, diz o parecer. O acórdão, com entendimento unânime, foi lavrado na sessão de julgamento do dia 5 de novembro.
Ação Declaratória
A mulher alegou que viveu e cuidou do padre desde 1973, em regime de união estável, tanto que frequentavam juntos assembleias religiosas, jantares, eventos, aniversários, entre outros compromissos sociais durante muitos anos. Em 1994, afirmou que passaram a morar no mesmo teto, junto com a irmã dele. E, em 2009, compraram imóvel próprio — registrado no nome de ambos.
Durante este período, cuidou de todos os deveres da casa e do padre, pois também era funcionária da Mitra Diocesana. Disse que nunca circulou ‘‘de mãos dadas’’ ou ‘‘enganchada’’ com o padre porque queria preservá-lo perante a Igreja e à sociedade. Por fim, admitiu que ambos não quiseram assumir o relacionamento, não dividam a mesma cama, nem tinham vida conjugal.
Em resposta à inicial, o Ipergs disse que os indícios apontam que a autora era empregada do servidor e que não ficou clara a intenção de constituir família. Alegou ainda que os dois passaram a morar juntos a partir de 2010, o que afastaria os cinco anos de convivência marital (o servidor morreu em 2011).
Relação de amizade
A juíza substituta Lynn Francis Dressler, da 2ª. Vara Cível de Cruz Alta, julgou a demanda totalmente improcedente, entendendo que não ficou configurada a alegada união estável.
Os autos indicam, escreveu a juíza na sentença, que havia entre a mulher e o morto uma relação de amizade, carinho, confiança, cuidados mútuos, mas não uma união estável na acepção da palavra. Até porque, na condição de padre da Igreja Católica, este assumiu compromisso com o celibato, ou seja, fez votos para viver em estado de solidão.
Para a julgadora, a mulher assumiu a função de ”verdadeira governanta” na casa e na vida do religioso, atuando ativamente na sua vida particular e pública, mas nunca com aparência de companheira. ‘‘Entretanto, na verdade, o fator predominante para a conclusão da inexistência de união estável entre as partes é a ausência do intuito de constituir família e de manifestação pública do estado de casados.’’
Por fim, afirmou que simples e meros relacionamentos de amizade, apego, simpatia, respeito, ajuda mútuos — ainda que desenvolvidos sob o mesmo teto — não são dignos de tutela jurídica pelo Direito de Família, Sucessório e Previdenciário. ‘‘A divisão de despesas da casa e o fato da autora possuir conta do serviço público de água no seu nome justifica-se por ser uma das proprietárias no imóvel e por nele residir’’, concluiu. Fonte: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul