Liberdade de Culto

SENTENÇA
Vistos etc.
Rosiel Pereira da Silva, Djailson Barbosa da Silva e Maurício de Paula Barbosa ajuizaram ação trabalhista em face de Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), alegando que são fiéis da Igreja Adventista do Sétimo Dia, cuja doutrina proíbe o trabalho secular no sábado dito “natural”, que vai do pôr-do-sol da sexta-feira ao pôr-do-sol do sábado imediatamente seguinte. Os autores foram punidos com advertência escrita por se recusarem a atender à convocação para o trabalho em dia de sábado. Sustentam que a empresa poderia ter convocado outros funcionários para trabalhar nesse dia e que se propuseram a trabalhar em qualquer outro dia ou horário, inclusive no domingo, o que não foi aceito pela empresa. Em virtude disso, pedem a anulação da punição sofrida, a emissão de uma ordem para que a reclamada se abstenha de exigir o trabalho aos sábados, bem como a condenação da empresa ao pagamento de indenização por danos morais e honorários advocatícios.
Rejeitada a proposta de acordo, a reclamada contestou os pedidos, refutando as alegações da parte autora. Alega que a ausência dos autores no sábado do dia 6 de dezembro de 2008 causou-lhe transtornos, pois os autores fazem a entrega domiciliar, obrigando a empresa a remanejar carteiros de outro distrito. Além disso, a atitude dos autores implicou em atraso na entrega de correspondências.
Durante a instrução, foram juntados documentos.
As partes aduziram razões finais.
Foi rejeitada a segunda proposta de acordo.
É o relatório. Passo a decidir.
Declarando-se sem condições de arcar com as despesas processuais, a parte autora faz jus aos benefícios da Justiça gratuita, ainda que formulado o pedido por advogado sem poderes específicos (OJ 331 da SDI-1 do C. TST).
O caso dos autos é de conflito entre o direito fundamental de praticar e expressar uma religião, de um lado, e o poder diretivo do empregador, de outro.
Antes de mais nada, é preciso enfrentar a objeção que a empresa fez em audiência quanto ao fato de os documentos apresentados pelos autores não mencionarem desde quando eles são membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Os autores comprovaram documentalmente que são fiéis da Igreja Adventista e que esse grupo religioso exige a abstinência de trabalho secular aos sábados, o que é, ademais, público e notório. O fato de os documentos apresentados não indicarem desde quando os autores são membros da Igreja Adventista não é relevante, pois a documentação apresentada pela empresa revela que, no dia da convocação para o trabalho no sábado, ela já sabia que os autores eram adventistas. Aliás, um dos pareceres do processo administrativo que culminou com a punição disciplinar revela que esse conflito não é novo na empresa.
Com efeito, um dos documentos diz que “o funcionário não comparece as convocações para o trabalho em dia de sábado, alegando motivo religioso, por ser adepto da Igreja Adventista do 7º Dia. Quando da convocação, o colaborador disse que se fosse possível poderia trabalhar no domingo ou na segunda-feira [que era feriado local], mas no sábado não viria porque é o seu dia de dedicação às atividades religiosas”.
Já no citado parecer, consta que o funcionário “vem faltando às convocações quando eventualmente é convocado para trabalhar aos sábados”. Consta ainda que a chefia imediata “vinha fazendo concessões para este trabalhar no domingo, porém para isso acontecer era necessário que um dos gestores também trabalhasse, para abrir a unidade e acompanhar o colaborador em suas atividades internas”.
Tais declarações comprovam que a empresa já sabia há algum tempo que os autores eram membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia e já sabia, no momento da convocação, que os autores, muito provavelmente, não compareceriam ao trabalho no sábado do dia 7 de dezembro de 2008. É irrelevante, portanto, que os documentos apresentados pelos autores não mencionem desde quando eles são membros da sua congregação religiosa.
Ultrapassada essa questão, é preciso enfrentar a matéria principal.
Sabe-se que a liberdade de crença e de religião é uma das conquistas do estado democrático de direito. Uma das principais conquistas da civilização. Trata-se de um direito fundamental do cidadão que garante a liberdade de ter uma crença e de expressá-la. Por ele, o cidadão pode ser ateu e pode mudar de religião quando bem entender.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que “todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular” (artigo XVIII).
Para tornar mais claro esse princípio, a ONU fez editar em 1981 uma declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação baseadas em religião ou crença (Resolução 36/55). Em um dos considerandos que introduzem a declaração, a ONU salienta que “a religião ou as convicções, para quem as profere, constituem um dos elementos fundamentais em sua concepção de vida e que, portanto, a liberdade de religião ou de convicções deve ser integralmente respeitada e garantida”.
Os primeiro artigo dessa declaração dispõe o seguinte:

“1. Toda pessoa tem o direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de Ter uma religião ou qualquer convicção a sua escolha, assim como a liberdade de manifestar sua religião ou suas convicções individuais ou coletivamente, tanto em público como em privado, mediante o culto, a observância, a prática e o ensino.
2. Ninguém será objeto de coação capaz de limitar a sua liberdade de ter uma religião ou convicções de sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a própria religião ou as próprias convicções estará sujeita unicamente às limitações prescritas na lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos e liberdades fundamentais dos demais.”

Mais adiante, o art. 6º da declaração detalha os direitos da pessoa humana relacionados à liberdade religiosa:

“Conforme o artigo 1 da presente Declaração e sem prejuízo do disposto no parágrafo 3 do artigo 1, o direito à liberdade de pensamento, de consciência, de religião ou de convicções compreenderá especialmente as seguintes liberdades:
(…)
h) A de observar dias de descanso e de comemorar festividades e cerimônias de acordo com os preceitos de uma religião ou convicção”.

Como se vê, o direito à liberdade religiosa abrange a liberdade de observar os dias de descanso estabelecidos pela crença.
No mesmo sentido, o art. 12 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil e incorporada à sua legislação interna, com status supralegal, dispõe que “ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças”.
A Constituição do Brasil estabelece a liberdade religiosa como um direito fundamental. É claro que ele não é ilimitado nem absoluto. Nem mesmo direito à vida é absoluto, pois a Constituição o relativiza nos casos de guerra declarada.
Não obstante, os direitos fundamentais devem ser sempre respeitados, só podendo ser relativizados quando outra conduta não puder ser adotada sem relevante prejuízo de outro direito fundamental (a partir de uma ponderação de interesses) ou em caso de prejuízo à segurança, saúde, ordem e moral públicas.
A liberdade religiosa pode e deve ser flexibilizada, por exemplo, quando pais que frequentam uma determinada agremiação religiosa que proíbe a transfusão de sangue querem impedir que seu filho à beira da morte receba a transfusão que lhe salvará a vida. Neste caso, o direito fundamental à vida da criança deve prevalecer frente ao direito fundamental às convicções religiosas dos pais.
Da mesma maneira, uma religião que impusesse aos fiéis que andassem nus pela rua, ou que consumissem cocaína, ou que os obrigasse a roubar ou a matar os infiéis, não poderia ser respeitada pela coletividade nesses pontos. O direito fundamental à crença teria que ceder diante de outros interesses mais relevantes.
Quanto à observância de dias de guarda, uma hipotética religião que prescrevesse seis dias de guarda por semana, todas as semanas do ano, e permitisse que os fiéis trabalhassem em apenas um, não poderia ser invocada pelo empregado como justificativa para faltar a semana quase toda. Num caso como esse, a liberdade religiosa estaria sendo invocada para justificar o injustificável: o direito de ganhar sem trabalhar, enquanto os que não professassem a religião teriam que trabalhar para ganhar. Isso feriria o direito fundamental à igualdade de todos perante a lei.
O direito à observância de um dia de guarda por semana, contudo, nada tem a ver com as exigências absurdas que citei nas linhas acima. Trata-se de um preceito milenar, que inspirou o legislador a estabelecer o repouso semanal remunerado. A origem desse costume pode estar no livro do Gênesis, segundo o qual Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo.
Por essa razão, se o próprio direito positivo incorporou a folga semanal como medida de saúde, para possibilitar o descanso do trabalhador, não parece razoável simplesmente ignorar, de antemão, o direito a guardar um dia da semana em função da religião. Somente a análise da situação concreta é que pode conduzir à legitimação de um ato de restrição do direito de liberdade religiosa, quando tiver que ceder a um interesse superior.
Isso significa que é dever do Estado e da sociedade, ou seja, de todas as pessoas, respeitar a liberdade religiosa de cada um, fazendo o possível para não sacrificar o pleno exercício dessa liberdade. Atenta a essa realidade, a jurisprudência vem autorizando que candidatos a concursos públicos que estejam impedidos, por sua fé, de realizar os exames em dias de sábado, possam realizá-los em horário diferenciado. No mesmo sentido, algumas unidades da Federação vêm produzindo leis que possibilitam aos alunos enquadrados nessa situação prestar exames em horários alternativos e substituírem a frequência às aulas aos sábados por trabalhos escritos.
Transportando-se essa compreensão para o âmbito da relação de emprego, pode-se concluir que é dever do empregador fazer o possível para respeitar a liberdade de religião do seu empregado, inclusive no tocante a eventual dia de guarda. Nesse caso, deve o patrão fazer o que estiver ao seu alcance para flexibilizar o horário do trabalhador, permitindo que ele descanse no dia de guarda e trabalhe nos demais.
A crença de cada um é algo sagrado. Entender que ela deve ceder ao poder diretivo do empregador, em toda situação, é retroagir ao tempo em que a garantia da liberdade de culto não existia. O trabalhador não deixa de ser cidadão quando veste a farda da empresa ou adentra ao interior de suas instalações. Ele continua sendo uma pessoa com suas convicções políticas, filosóficas e religiosas, que devem ser respeitadas.
Nesse sentido, o catedrático Juan A. Sagardoy Bengoechea, da Universidad Complutense de Madrid, cita decisões do Tribunal Constitucional da Espanha no sentido de que “la celebración de un contrato de trabajo no implica em modo alguno la privación para una de las partes, el trabajador, de los derechos que la Constitución le reconoce como ciudadano” (S. TC 106/1996) e que “las organizaciones empresariales no forman mundos separados y estancos del resto de la sociedade, ni la liberdad de empresa que, estabelece el art. 38 del Texto Constitucional que legitime que quienes prestan servicios en aquéllas por cuenta y bajo la dependencia de sus titulares deban soportar despojos transitorios o limitaciones injustificadas de sus derechos fundamentales y libertades públicas, que tienen un valor central en el sistema jurídico constitucional” (Los derechos fundamentales y el contrato de trabajo. Cizur Menor (Navarra): Editorial Aranzadi, SA, 2005, p. 29).
Com respeito à acomodação entre as crenças religiosas e a atividade produtiva, o mesmo autor segue dizendo: “Respecto a la acomodación razonable de la organización productiva, tenemos un ejemplo, en el art. 23 ET, respecto de los trabajadores (exámenes, permissos para estudios, etc). Y, asimismo, con motivo de creencias religiosas o éticas – descansos en días determinados de la semana, actos contrarios a las mismas, etc. – el empresario, en la medida de lo posible, debe acomodar la organización del trabajo para no ir contra tales creencias” (ob. cit., p. 43-44).
Os esforços da sociedade devem convergir para a inclusão, não a exclusão, das minorias. Impor aos guardadores do sábado – que são ínfima minoria – a obrigação de trabalharem nesse dia, implica em exclusão social, pois só resta ao cidadão escolher entre duas alternativas: contrariar um mandamento que julga divino e manter o emprego ou obedecer ao mandamento e ficar à margem do mercado de trabalho. Como muitos escolheriam a segunda opção, por fidelidade à sua crença, o resultado seria o desemprego de muitas pessoas. Isso poderia ser evitado, na maior parte dos casos, se a atividade produtiva, com um mínimo de desconforto, fizer o possível para permitir o repouso no dia de guarda. Sem dúvida, é a solução que privilegia o interesse público e o direito fundamental à religião.
Não há duvida, portanto, que o direito à liberdade de crença deve ser respeitado, só podendo ser relativizado em hipóteses excepcionais.
No caso dos autos, vários são os motivos para o respeito ao direito de guardar o dia de sábado.
Primeiro, a reclamada é uma grande empresa, com milhares de funcionários. A quantidade de sabatistas em seu quadro funcional certamente é pequena. Não haverá grandes constrangimentos em se adequar a dinâmica do empreendimento ao direito de natureza religiosa desses empregados. Até porque a reclamada mantém atividades em todos os dias da semana, inclusive aos domingos. Pelo menos é isso que se extrai do contrato de trabalho dos reclamantes, senão vejamos:

“O empregado é admitido para prestar a jornada de oito horas diárias, no total de quarenta e quatro horas semanais, no horário que o empregador mantém turnos diurno, noturno e misto de trabalho, sendo da obrigação do empregado prestar serviços em qualquer deles, a critério do empregador.
(…) Está também ciente o empregado de que o empregador mantém atividades nos domingos e feriados, sendo da obrigação do empregado trabalhar em tais dias, estipulando-se que o repouso semanal constará de tabelas de revezamento divulgado periodicamente” (sic).

Ora, se a empresa desenvolve atividades nos sete dias da semana e se o repouso semanal remunerado é concedido em sistema de revezamento, não me parece ser muito custoso fazer coincidir a folga dos autores com os sábados, sobretudo porque a grande maioria dos funcionários, com certeza, prefere folgar aos domingos.
Por outro lado, se o problema é a dificuldade de entrega domiciliar aos domingos, pelo fato de o comércio estar fechado nesses dias, isso também pode ser contornado. Atualmente, parte do comércio abre aos domingos, sobretudo os shoppings centers e supermercados. Mas se for muito inconveniente a entrega nesses dias, os autores poderiam ter tido a carga de entregas aumentada nos dias úteis de modo a não precisar trabalhar nos sábados. Ou poderiam ter sido enviados para entregar correspondências em áreas residenciais. Uma outra alternativa seria convocar outros carteiros para entregar as correspondências no sábado (coisa que a empresa confessou ter feito). Os autores não seriam convocados mas teriam um acréscimo proporcional de trabalho nos dias úteis, de modo a manter a isonomia com os demais carteiros.
Em suma, muitas alternativas a empresa teria para contornar o problema. Tanto que, em um dos pareceres exarados no processo que culminou com a punição dos autores, consta que eles já chegaram a trabalhar em domingos, para compensar a ausência nos sábados. O motivo invocado para suspender essa concessão – ter que mandar um encarregado para supervisionar os reclamantes no domingo – não parece um sacrifício muito grande para a empresa. Sacrifício incomparavelmente maior é obrigar os reclamantes a agir contra a sua consciência e sua fé.
É visível a desproporção entre o sacrifício exigido da empresa (que é irrelevante) para manter íntegro o direito fundamental dos reclamantes e o sacrifício exigido dos autores (que é descomunal) para preservar o poder diretivo da empresa. Em casos como este, não há dúvida de que o direito fundamental à expressão religiosa deve prevalecer.
Com esses fundamentos, considero injusta e ilegal a punição aplicada aos autores, acolhendo o pedido de sua anulação, bem como a tutela inibitória pleiteada, de modo que a empresa fique impedida de exigir dos reclamantes o trabalho do pôr-do-sol da sexta-feira ao pôr-do-sol do sábado.
No sentido do texto, encontramos a decisão a seguir transcrita, proferida pelo Juiz do Trabalho Carlos Rodrigues Zahlouth, no processo nº 1217-2006-010-08-00-4, em situação análoga à presente:

“É certo que a empresa tem o poder diretivo de determinar trabalho a seus funcionários, especialmente na categoria dos vigilantes, onde existem diversos postos de trabalho.
Porém, esse poder não é absoluto, pois patente que o reclamante era judeu, onde é proibido por força religiosa o trabalho aos sábados, a ausência do autor, não foi deliberada e com o fito de abandono, mas sim por conjunturas sociais e religiosas.
(…)
É direito fundamental de toda pessoa não ser obrigada a agir contra a própria consciência e contra princípios religiosos. Segue-se daí, não ser lícito obrigar-se cidadãos a professar ou a rejeitar qualquer religião, ou impedir que alguém entre ou permaneça em comunidade religiosa ou mesmo a abandone. O direito de liberdade de consciência e de crença deve ser exercido concomitantemente com o pleno exercício da cidadania.
(…) Bem aponta Kant, em sua obra ‘Fundamentos para uma Metafísica dos Costumes’, que o homem é o único ser capaz de orientar suas ações a partir de objetivos racionalmente concebidos e livremente desejados. A dignidade do ser humano consistiria em sua autonomia, que é a aptidão para formular as próprias regras de vida, ou seja, sua liberdade individual ou livre arbítrio.
Foi somente no século III d.C que a expressão liberdade religiosa – libertas religionis – foi, provavelmente, utilizada pela primeira vez, por Tertuliano, advogado convertido ao cristianismo e que passou a defender a liberdade religiosa em face dos abusos do Império Romano. A liberdade religiosa é, como se sabe, um direito humano fundamental, assegurado pelas Constituições dos diversos Estados democráticos e, também, por importantes declarações e tratados internacionais de direitos humanos.
A liberdade religiosa comporta pelo menos três acepções: jurídica, teológica ou eclesiástica e bíblica.
No que se refere à liberdade religiosa na acepção jurídica, a mesma compreende, essencialmente, a liberdade religiosa como um direito fundamental da pessoa humana. Nesse sentido, Segundo Jorge Miranda, a liberdade religiosa ocupa o cerne da problemática dos direitos humanos. Ora, no curso da história da humanidade, o direito à liberdade religiosa representa uma conquista extremamente recente. Pode ser identificada nas três fases da era dos direitos, mencionadas por Norberto Bobbio. Segundo o autor italiano, os direitos humanos ‘nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais’. Como direito natural, a liberdade religiosa surgiu no século XVIII, com as primeiras declarações de direitos de 1776 (americana) e 1789 (francesa). Como direito efetivamente tutelado, a liberdade religiosa surgiu com a Constituição Americana. Como direito internacional, a liberdade religiosa surgiu no Segundo Pós-Guerra, com o desenvolvimento do sistema global de proteção aos direitos humanos ligado à Organização das Nações Unidas – ONU.
(…) Para a esmagadora maioria dos cidadãos do País, que são cristãos e que guardam o domingo, não haverá trabalho, provas ou concursos no dia que consagram. O que se defende é o tratamento igual àqueles que guardam o sábado. Não se fere, portanto, o princípio da isonomia.
Ademais, a própria Constituição, protetora do princípio da igualdade, também autoriza certas limitações à mesma liberdade como na previsão da chamada ‘escusa de consciência’, nos termos do artigo 5º, inciso VIII, visando à garantia das liberdades de pensamento e opinião.
Assim, é evidente que a obrigação de praticar atividade no sábado, ao ser descumprida porque decisão da empresa assim impôs, ao não fixar uma alternativa, não fere a norma constitucional; ao contrário respeitar tal posição, propicia a liberdade de convicção sem feri-la.
(…) Neste sentido, cita-se o constitucionalista português Jorge Miranda que ressalta a importância da liberdade religiosa, e afirma que ela está ‘no cerne da problemática dos direitos humanos fundamentais, e não existe plena liberdade cultural nem plena liberdade política sem essa liberdade pública, ou direito fundamental’.
Rui Barbosa também preconizava, ‘de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa.’
Portanto, somente nos casos de obrigações legais, não se pode opor restrições religiosas, mas não no caso de trabalho, quando a empresa, de grande porte em sua área de atuação em Belém, deveria por força constitucional adequar o horário de trabalho do autor para não coincidir aos sábados, ainda mais que a questão está consolidada por mais de seis anos.”

A conduta da empresa impingiu aos autores uma tortura psicológica que poderia ter sido evitada, pois eles se viram diante de uma escolha de Sofia. Ou obedeciam ao seu Deus e desobedeciam à ordem injusta da empresa, colocando o seu emprego e sua subsistência em risco, ou se sujeitavam à ira de Deus (na ótica deles) para manter a fonte de sua sobrevivência.
O direito da empresa a exercer o poder diretivo e disciplinar foi exercido de forma abusiva, pois violou sua função social. Com efeito, como ensina Edilton Meireles, “pelo critério da função social se tem que o ato é abusivo quando este se desvirtua do instituto jurídico que foi criado, o qual integra. Isso porque, todo e qualquer instituto jurídico tem uma destinação social. Todo instituto jurídico é criado, não só ‘para o movimento das riquezas do mercado’, ou para fins meramente egoísticos, mas, principalmente, para servir à coletividade” (Abuso do direito na relação de emprego. São Paulo: LTr, 2005, p. 77).
É certo que a empresa tem o direito de exigir o trabalho e dirigir a prestação de serviço. No entanto, esse direito não pode ser exercido de forma absoluta e ilimitada, mas observada a sua destinação social. Nesse sentido, Maria Celina Bodin de Moraes diz que “a regulamentação da atividade privada (porque regulamentação da atividade quotidiana) deve ser, em todos os seus momentos, expressão da indubitável opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana” (apud Edilton Meireles, ob. cit, p. 78).
Assim, a empresa, ao exercer o seu poder diretivo, não pode desprezar a dignidade dos seus subordinados. Não pode esquecer que eles, além de empregados, são pessoas humanas, cidadãos com direitos fundamentais. “Nesta trilha, farta doutrina cita como violadores da função social todos os atos que ofendem os direitos fundamentais, em especial os direitos da personalidade, incluindo-se entre estes últimos tudo o que está relacionado ao homem em função de sua própria natureza, a exemplo da vida, integridade física e psíquica, corpo, honra, identidade, sigilo, liberdade, imagem, voz, recato, pensamento, intimidade, sentimento religioso, crenças, manifestações do intelecto (direitos autorais), etc. Em suma, os direitos físicos, os direitos psíquicos e os direitos morais do ser humano. Assim, o contrato, de mero instrumento de circulação de riquezas, transformou-se em instrumento de proteção dos direitos fundamentais, pois não se concebe o ‘homem como sujeito isolado (indivíduo-livre) senão como membro ativo de uma sociedade plural na qual todos são igualmente livres. (…) Em suma, ‘a valorização da pessoa passa a ser a preocupação principal, e não o patrimônio’. Pode-se afirmar, ainda, que a ‘função social do contrato, enfim, garante a humanização dos pactos, submetendo o direito privado a novas transformações’” (Edilton Meireles, ob. cit., p. 79-81).
Com isso, o abuso de direito da empresa (subespécie do ato ilícito em sentido amplo) traz como consequência o dever de indenizar os autores pelos danos morais decorrentes do sofrimento psicológico a que foram submetidos. Note-se que não é necessária a “prova” do dano moral, que é presumível na hipótese dos autos.
Assim, considerando-se a natureza e a gravidade da ofensa, o nível econômico dos envolvidos, o grau de culpa do ofensor e, sobretudo, o intuito pedagógico da condenação, arbitro a indenização por danos morais em R$ 5.000,00 para cada autor.
Em virtude da verossimilhança da alegação e do risco de dano aos reclamantes, defiro o pedido de antecipação da tutela, para suspender a eficácia da advertência escrita e determinar à empresa que se abstenha de exigir dos autores o trabalho aos sábados.
São devidos honorários advocatícios de sucumbência, arbitrados em 20% sobre o valor da condenação.
Com efeito, a legislação processual trabalhista não tem norma específica que trate dos honorários advocatícios em todas as situações, mas apenas nos casos de assistência sindical (Lei 5.584/70), e tão-somente para estabelecer o destinatário dos honorários. Esta omissão leva à aplicação subsidiária do princípio da sucumbência do processo civil, plenamente compatível com o processo do trabalho, inclusive com o “jus postulandi” das partes.
O entendimento contido na Súmula 219 do C. TST não se coaduna com a atual ordem constitucional, que não recepcionou a assistência sindical estabelecida pela Lei 5.584/70, incompatível com a liberdade sindical e a obrigação do Estado, não do sindicato, de prestar assistência jurídica aos necessitados.
Mesmo que esse entendimento fosse compatível com a Constituição, ele não poderia ser mantido após o advento da Lei 8.906/94, que destinou os honorários advocatícios ao advogado, não ao sindicato. Por outro lado, a Lei 10.288/2001 passou a disciplinar a assistência judiciária no processo do trabalho, revogando tacitamente a Lei 5.584/70, na parte que tratava desse tema. Posteriormente, a Lei 10.537/2002 alterou a redação da CLT, que deixou de prever a assistência judiciária no processo do trabalho, retirando, assim, por completo, o suposto respaldo legal para o entendimento da Súmula 219 do C. TST.
Como se isso não bastasse, os honorários advocatícios foram trazidos para o direito material pelo novo Código Civil, fincados no princípio da restituição integral, cuja aplicação ao Direito do Trabalho é incontestável.
Com o advento da Emenda Constitucional nº 45 e a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, a jurisprudência cristalizada na Súmula 219 tornou-se ainda mais insustentável, pois a concessão de honorários advocatícios apenas nas lides oriundas da relação de trabalho em sentido amplo e nas demais lides sujeitas à competência desse ramo do Judiciário, excluindo-se apenas as lides oriundas da relação de emprego, fere os princípios da isonomia e da razoabilidade.
O pagamento dos honorários de sucumbência pelo vencido tem a nobre função de possibilitar um julgamento justo, com a reparação integral do dano, evitando que o trabalhador tenha que retirar uma parte de seu crédito alimentar para pagar os honorários de seu advogado. Além disso, a ausência dos honorários de sucumbência faz com que o crédito trabalhista seja o mais barato de todos, desestimulando o seu adimplemento e fazendo com que o empregador dê preferência à quitação de dívidas de outra natureza, que são acrescidas de honorários advocatícios quando cobradas.
Acrescente-se que, no caso dos autos, os reclamantes estão assistidos pelo sindicato de sua categoria. Assim, mesmo que não se aplicasse o entendimento acima, os honorários advocatícios seriam devidos.
Isto posto, ACOLHO os pedidos formulados por Rosiel Pereira da Silva, Djailson Barbosa da Silva e Maurício de Paula Barbosa em face de Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), para:

I – em sede de tutela antecipada:

a) suspender a punição disciplinar que lhes foi aplicada em virtude da ausência ao trabalho no dia 6 de dezembro de 2008 (sábado), bem como qualquer punição que porventura tenha sido aplicada após essa data, com o mesmo fundamento;

b) determinar à empresa que se abstenha de exigir o trabalho dos autores do pôr-do-sol da sexta-feira ao pôr-do-sol do sábado, sob pena de multa de R$ 50.000,00 por reclamante em caso de descumprimento.

II – em caráter definitivo:

a) anular a punição disciplinar que lhes foi aplicada em virtude da ausência ao trabalho no dia 6 de dezembro de 2008 (sábado), bem como qualquer punição que porventura tenha sido aplicada após essa data, com o mesmo fundamento;

b) determinar à empresa que se abstenha de exigir o trabalho dos autores do pôr-do-sol da sexta-feira ao pôr-do-sol do sábado, sob pena de multa de R$ 50.000,00 por reclamante em caso de descumprimento;

c) condenar a reclamada a pagar aos reclamantes indenização por danos morais no importe de R$ 5.000,00 para cada um.

Honorários advocatícios pela reclamada, no importe de 20% do valor da condenação, que poderão ser compensados pelos reclamantes com eventuais honorários contratuais que deva a seu advogado.
Custas pela reclamada no importe de R$ 360,00, calculadas sobre o valor da condenação, de R$ 18.000,00, inexigíveis, em virtude da sua equiparação legal à Fazenda Pública.
Não há incidência de contribuições previdenciárias e imposto de renda.
Expeça-se imediatamente ofício ao Ministério Público do Trabalho para que tome conhecimento dos fatos narrados nos autos e adote as providências que entender cabíveis.
João Pessoa/PB.

Alexandre Roque Pinto
JUIZ DO TRABALHO

Fonte: Vara do Trabalho de João Pessoa/PB.